Você é uma mulher vaginal ou clitoridiana? Prefere ficção ou escrita de si?

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Nestes tempos de indireta na internet, o espectro de acusações a quem escreve pode ir da primeira à terceira pessoa, do narcisismo à apropriação. Lembro da pergunta que me fez um colega numa mesa da qual participei: mas por que vocês, escritores de hoje, optam tanto pelo que se chama de autoficção?

Elaboro melhor a resposta agora: pela liberdade de escrever a partir da matéria da minha vida o quê e como eu quiser. Porque a literatura precisa continuar sendo um lugar de exercício de liberdade. Porque a imaginação não só precisa ser livre, mas só é imaginação se for livre. Porque criação literária sobre si não deixa de ser criação. É sempre ficção, e ao mesmo tempo nunca é. Até o estilo é autobiográfico, escreveu Renato Prelorentzou em sua tese de doutorado.

Prefiro entender a escrita de si como Rachel Cusk entende Annie Ernaux: mais como sacrifício que como narcisismo. No perfil que escreveu para a New York Times Magazine, traduzido para o português por Mariana Delfini, Cusk afirma que “Ler um livro de Annie Ernaux depois do outro era como assistir à construção de um edifício em tempo real, uma coisa que brotava da terra molhada e era fabricada tijolo por tijolo. A beleza e a brevidade perturbadoras desses livros, bem como a sua aparente simplicidade, de certa forma disfarçavam o alto preço de sua sinceridade. Eu nunca tinha visto a suposta liberdade — o ‘narcisismo’, como agora gostamos de chamar — da análise de si mesma ser tão exposta em sua brutalidade. Ernaux compreendia a profundidade do isolamento e da perda em que precisava mergulhar para buscar a realidade original de seu ser. Sua arte não tem nada a ver com a ênfase em uma experiência pessoal; pelo contrário, é quase uma autoviolação.”

Texto nenhum de mulher alguma que escreva sobre si pode ser acusado por um homem de narcisismo sem que se suspeite de o comentário ser impelido pelo temor da perda do privilégio. As mulheres foram escritas, teorizadas, inventadas por homens durante séculos. Que uma mulher escreva sobre si mesma hoje é, de antemão, um gesto político. Quando tematiza a própria exposição, mais ainda — como faz Tatiana Salem Levy em seu belíssimo “Melhor não contar”.

“Sempre começo escrevendo meus livros em terceira pessoa. (…) Mas, invariavelmente, em algum momento da escrita há uma primeira pessoa que se impõe e só então sinto que estou dizendo o que quero. (…) Uma primeira pessoa que, mesmo quando tem a voz da autora, não se confunde com ela, pois é já outra coisa, literatura. Ou será que se confunde?”, se pergunta Salem Levy.

Quando escutei a outra pergunta, aquela feita a minha amiga, um paralelo se fez, raciocínio imediato. Dias antes eu lia “O prazer censurado – clitóris e pensamento”, publicado no Brasil pela Ubu com tradução de Célia Euvaldo, em que a filósofa francesa Catherine Malabou discute, entre tantas outras questões, a diferença instituída por Freud entre a mulher clitoridiana e a mulher vaginal.