Só a loucura me interessa – 30/05/2024 – Tati Bernardi

Esportes

Só a loucura me interessa. Foi isso o que eu disse ao tentar uma vaga em um dos principais institutos de formação em psicanálise do país. E obviamente não passei.

Eu poderia ter dito: “Ah, eu tenho esse ímpeto, desde muito novinha, de ajudar as pessoas, de melhorar a vida delas”. Mas não consegui mentir. O que eu tenho é uma curiosidade perversa pelo cachorro de dentes afiados que dorme dentro de cada um.

Sempre escrevi sobre meus medos, mas acho que nunca contei a vocês o maior de todos eles: o papo furado. Todo mundo é impostor, mas os muito controlados, normais, elegantes são os piores. Quanto engodo bípede ainda vamos aturar até o dia esplendoroso em que começaremos a gostar de jardinagem?

Nunca serei uma analista, mas não deixo de sonhar com algumas cenas em meu consultório. Os pacientes chegando cabotinos, eretíssimos, e aos poucos curvando suas estruturas elitistas, amolengando seus ligamentos robustos e começando a me entregar seus “despencamentos”.

E eu provocando mais e mais até o barulho do rompimento psíquico silenciar a lenga-lenga burocrática. Do pequeno buraco, a loucura começará a colocar sua carinha pra fora. A forma mais genuína de se estar no mundo iluminando toda a sala.

Sou uma voyer de maluquice, já me vejo contorcendo os dedos dos pés em prazer. Quando a doidice finalmente for solta, não terei medo deles, terei medo do tamanho de meu assanhamento.

Me mostra, vai. Onde está a fenda? Onde foi feito o corte? Onde você está remendado? Ainda que hoje seja apenas uma explosão de feira de ciências, vamos juntos batalhar por esse vulcão guardado aí dentro.

É certo, diante da insanidade alheia, eu sentir que estou diante do infinito, de Deus, da minha salvação?

Cada pessoa desarrazoada que cruzou meu caminho foi como um passeio inesquecível que fiz em um dia ensolarado. Quando o psicanalista Christian Dunker sofreu uma espécie de cancelamento curiosíssimo na internet apenas por “andar com uma louca” (que no caso era eu) ele não entendeu nadinha e me disse: “Ué, mas não é justamente disso que eu deveria gostar?”.

Não lembro direito de colegas de escola, viagens com meus pais, festas de aniversário. No entanto, eu me recordo de absolutamente todas as pessoas loucas que eu conheci na minha infância.

O biruta da rua dos meus avós que não sabia andar, somente correr. A tia que dava aula de francês na USP, mas se guardou virgem para um marinheiro que “um dia voltaria”, apesar de terem se conhecido num baile a fantasias. O amigo da minha mãe que quase toda sexta deixava recados em sua secretária eletrônica cantando “Dona”, do Roupa Nova.

Meu pai tinha um primo que era esquizofrênico. Ele parecia o Freddie Mercury e gostava de caminhar como se fosse um artista milionário muito benevolente que havia empregado 429 parentes pobres em sua empresa.

Eu perguntava o que o primo dele fazia e ele me explicava, balançando a cabeça, como se o primo fosse um ator carente ou uma criança levada: “Ele esfrega um monte de bananas pela casa, até a casa estar inteira ensebada de banana. Então ele pega uma mangueira que tem no quintal e lava a casa inteira”. Eu era fascinada por esse homem.

Um dia eu fiz uma das piores coisas que uma mulher prestes a fazer uma cesárea poderia fazer: assisti a um vídeo de uma cesárea. Um corte superficial e depois uma infinidade de camadas. Por fim, a médica enfiava as mãos dentro da mulher, empurrando seus órgãos para os lados, e trazia para o mundo a mais perfeita insanidade berrando por afeto. Somos todos insanidades berrando por afeto. Somos todos o dia do nosso nascimento.

Passei minha vida inteira esperando o nome para o meu frio na barriga. Seria meu inconsciente uterino? O filho é a maior das loucuras e por isso é tão difícil nomear (e sentimos um alívio imenso quando o bebê começa a se reconhecer por um nome?).

O texto não fazer sentido é proposital.


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