Roseana Murray celebra a vida em livro infantil de poesia – 27/04/2024 – Era Outra Vez

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Os céticos que me perdoem, mas há uma dose de mistério na literatura. E, principalmente, na poesia.

A conversa aqui não é religiosa nem mística, mas sobre a natureza estética da arte e seu desfile no terreno do sensível, da subjetividade e dos novos significados e interpretações. Em obras de qualidade, passado, presente e futuro costumam se mesclar. Fronteiras são borradas. É inevitável.

Isso fica claro no livro “De Malas Abertas”. Lançado no ano passado, ele reúne poesias de Roseana Murray ilustradas por Maria Eugênia Longo. Veja o exemplo do poema “Ida e Volta”, que faz parte da coletânea:

“Não é a mesma mala/ na ida e na volta:/ mais gasta, mais cheia/ de tempo, memória/ e cicatrizes./ Às vezes dói esvaziar/ o que foi vivido,/ passar da mala/ para gavetas profundas.”

Do ponto de vista da forma, os versos brincam com palavras, sons e ritmos. Do lado do significado, usa a mala como metáfora para a vida, a passagem do tempo, a finitude das experiências e das pessoas. Durante a leitura, é como se abríssemos as nossas gavetas mais profundas e malas mais trancadas para investigar o que guardamos dentro delas.

Nas últimas semanas, porém, esse poema ganhou novas dimensões.

Na manhã do dia 5 de abril, Murray foi atacada por três cachorros que escaparam de uma casa vizinha enquanto ela caminhava pelo bairro onde vive, em Saquarema, no Rio de Janeiro. Resgatada de helicóptero, a escritora ficou 13 dias hospitalizada e teve o braço direito amputado. Já em casa e fora de perigo, ela segue escrevendo. E diz que vai aprender a fazer isso com a mão esquerda.

Agora volte quatro parágrafos e releia os versos de “Ida e Volta”.

Essa força poética, esse mistério e essa literatura inseparável das linhas que formam a trama da vida se espalham por todo o livro. Cada um dos 23 poemas escancara uma mala diferente, usada como ponto de partida para falar de chegadas, andanças, mudanças, trânsitos e instabilidades.

Há o frio da barriga que nascem das descobertas, como em “Escolha”: “Na mala apenas/ a alma enrolada/ em papel de seda/ azul,/ pronta para as mais/ vastas emoções”.

Surgem segredos e sombras em maletas fechadas e perdidas: “E as malas perdidas,/ encostadas num canto,/ num país estranho,/ no porto, no aeroporto,/ numa estação de trem,/ o que levarão dentro?”.

O livro aparece como símbolo da maior das viagens. É ele que nos leva para longe, apresenta personagens inesperadas, cria labirintos: “Desembarco de um livro,/ embarco em outro./ Há apenas o intervalo/ de um suspiro/ para lavar o rosto,/ rearrumar a mala”.

Os textos são ilustrados em página dupla por Maria Eugênia Longo. A ilustradora, colaboradora da Folha durante anos, amplifica as possibilidades de leitura ao criar visualmente uma bagagem para cada poema.

Às vezes, elas se tornam telas, onde são pintados rostos e balões. Ganham trimendisionalidade com livros, cidades, malabares e flores que saltam no espaço. Enchem-se de água, pessoas, fotografias, casas, janelas, barcos, sapatos multicoloridos.

A cada virar de página, Murray e Eugênia fazem um dueto em que palavra e imagem se completam. É uma dança, cujo resultado é uma terceira coisa, que não existe só no texto nem apenas na ilustração —mas, sim, no encontro.

Afinal, é assim que nasce a literatura. E a poesia. No encontro.

Aliás, durante a hospitalização da escritora, o slogan “lute como uma poeta” foi usado como forma de torcida para a sua recuperação. Como atalho para o encontro poético e simbólico entre ela e seus leitores. Outra possibilidade seria ter escolhido os últimos versos de “Recomeço”, poema que faz parte de “De Malas Abertas”.

Nele, a autora escreve que na mala do palhaço cabem risos, dias de solidão, truques, lágrimas, malabares, restos de lona. E termina assim:

“Cabe sempre/ um recomeço.”


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