O romance censurado pelo stalinismo que virou sucesso na Rússia de Putin – 05/04/2024 – Mario Sergio Conti

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É tão a espessa nuvem de enxofre que envolve o romance russo “O Mestre e Margarida” que ele poderia ter sido escrito por Lúcifer, caso o Tinhoso fosse bem-humorado. O livro sulfuroso não para quieto: é uma coisa, depois outra, depois o contrário das duas. É difícil até descrevê-lo.

Ele lembra “Alice no País das Maravilhas”, mas é demoníaco: um gato colossal fala, uma bruxa nua sobe às nuvens num porco voador, uma vampira crava os caninos num burocrata. Febril, a fantasia retrata a frieza da Moscou dos anos 1930 –apesar de parte do romance se passar na Judeia dos Evangelhos, sendo que nela o herói é Pilatos, não Jesus.

Embora seja uma comédia de humor mais negro que a asa da graúna, o Mestre e a Margarida do título são Romeu e Julieta, pois que se afogam na lava de um ultrarromantismo endemoninhado. Delirante, diabólico, com dezenas de doutas referências literárias, o livro virou best-seller na Rússia, se bem que depois de décadas de censura.

Entendidos dos EUA e da França o consideram um dos grandes romances do século 20, à altura dos de Proust e Joyce. Há centenas de adaptações dele para TV, balé, teatro, quadrinhos, desenhos animados, ópera, cinema e música. Lembra de “Sympathy for the Devil”, dos Rolling Stones? Pois então: Mick Jagger se inspirou em “O Mestre e Margarida”.

O romance é obra de Mikhail Bulgákov, um médico ucraniano que combateu os bolcheviques na guerra civil, foi jornalista e em seguida literato. Sempre às turras com o stalinismo, escreveu sua obra máxima em segredo, durante 12 anos, terminando-a um mês antes de morrer, em 1940.

Sabendo que tinha um caldeirão de fel no armário, sua viúva o escondeu até 1967, quando alguns trechos, com as pestilências devidamente higienizadas, foram publicados numa revista. A primeira edição integral saiu na União Soviética em 1973.

Satanás emergiu novamente no 25 de janeiro passado, quando um filme baseado no livro estreou em Moscou. Deu no New York Times: “A vida imita a arte e ‘O Mestre e Margarida’ agita a Rússia”. E mais: “Foi uma das estreias mais dramáticas e carregadas da história russa recente”.

O filme é uma superprodução de 17 milhões de dólares, dos quais 7 milhões vieram do Estado. Teve 5,5 milhões de espectadores até agora, número que leva produtores a soltar rojões. O triunfo foi intensificado pelas palmas ao fim de várias sessões.

Como tudo em torno do Beiçudo, a feitura do filme parece saída de um breviário de magia negra. Seu diretor, Michael Lockshin, é um norte-americano criado em Moscou. Em 1986, quando cientistas soviéticos fugiam para o Ocidente, o pai de Lockshin engatou marcha à ré: comunista, refugiou-se com a família em Moscou e denunciou o assédio do FBI.

O diretor topou adaptar o romance porque o amava desde a adolescência. Ao que parece, seu filme enfatiza a perseguição a um escritor refratário ao regime –um tema não muito do agrado de Putin. Mesmo assim, “O Mestre e Margarida” foi adiante; era a adaptação de um clássico que nada teria a dizer ao presente.

Deu-se a balalaika: a Rússia invadiu a Ucrânia, a coerção à intelligentsia se acentuou e o lançamento do filme foi adiado. O desconforto cresceu porque o melífluo Lockshin, de volta à sua casa em Los Angeles, foi às redes sociais apupar Putin e apoiar a Ucrânia.

Não se sabe por que diabos, o filme estreou, embora sem propaganda nem divulgação. Mas, para fúria do Kremlin, levou uma legião de diabretes ao cinema. Putin, versado nas sanhas do Pata-de-Bode, deve ter mandado para o quinto dos infernos os burocratas que o liberaram.

A balalaika virou sabá das feiticeiras: serviçais de Putin na imprensa e na televisão desancaram o filme, xingando-o de antirrusso. O sucesso de uma obra financiada e atacada por um mesmo regime configura o que Lênin, outra encarnação do Demo, chamava de contradições do sistema.

O derradeiro paradoxo é que o filme “antirrusso” só pode ser visto na Rússia, porque as autoridades luciferinas proibiram sua exportação. Mas o que resta é ótimo –o magma de sortilégios do romance de Bulgákov. (Há duas traduções dele na praça, a de Irineu Franco Perpetuo, da Editora 34, e a de Zoia Prestes, da Alfaguara).

É nele que o Capiroto proclama, ao saber que o Mestre pôs fogo em seus escritos sobre Pilatos: “Manuscritos não queimam”. O de “O Mestre e Margarida”, de fato, escapou aos lança-chamas de Stálin e Putin. O fogo nada pode contra a arte à vera, a negativa, a de Belzebu e Bulgákov.


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