Diário com Dalton Trevisan – 07/06/2024 – Mario Sergio Conti

Esportes

15 de março de 2016

Marleth Silva marcou o encontro no Café do Paço, no centro de Curitiba, às quatro da tarde. Nossa intenção era pôr a conversa em dia e falar mal da vida alheia. Cheguei minutos atrasado e ela já olhava o relógio.

Depois de ter combinado a conversa comigo, Dalton Trevisan a convidara para um café no mesmo horário. Para manter os dois compromissos, Marleth levou-me a tiracolo ao encontro com o escritor.

Era uma terça-feira de sol ameno e brisa fria. Para não deixá-lo esperando, andamos depressa por ruas cheias de gente atarefada. Entramos num botequim sem nada de turístico: chão e paredes de ladrilho, o dono atrás do balcão, três mesinhas mambembes. Numa delas, Dalton.

Magro e com o cabelo ralo, estava de camisa azul-claro de manga comprida, calça marrom de sarja, jaqueta e o boné sobre a mesa. Não aparenta 90, mas 70 anos. Abriu um baita sorriso, levantou-se, estendeu o braço e deu um aperto de mão firme.

O riso frequente e franco, a loquacidade e os olhos de um azul transparente contrastam com suas raras fotografias na imprensa –sempre sério, em preto e branco. É uma imagem equivocada. O vampiro de Curitiba é uma criatura solar.

O jeito ameno de falar lembra o de Oscar Niemeyer. Baixa a voz e separa lentamente as sílabas no final dos raciocínios, para dar-lhes um arremate irônico, às vezes autodepreciativo.

Havia pedido café e uma fatia de bolo de fubá, que veio grande. Ele a dividira em quatro pedaços; comeu dois e reservou os outros para Marleth. Como ela não tocou neles até o fim do encontro de duas horas, disse de brincadeira: “A Marleth não gosta de falar de boca cheia”.

Contou que agora só escreve textos curtos, que chamou de “haikais”, e empenha neles um tempo enorme. Lê o Tribuna, jornal sensacionalista que destaca o noticiário policial –”e aí fabulo”.

Lera há dias que o cadáver de um executivo de Belo Horizonte fora encontrado num motel da periferia de Curitiba. Imaginou um conto no qual o personagem, casado e com filho, gostava de transar com garotos de programa. O mineiro vira o anúncio do michê na internet e viera a Curitiba para a esbórnia clandestina. O rapaz o matou e roubou-lhe o dinheiro.

Ao que parece, o conto –ainda não terminado– traça sumariamente as pulsões de prazer e morte de gente solitária. Registra que o comércio dos corpos foi incrementado pela internet, bem como surtos de uma crueldade sádica. O mestre minimalista segue atento.

Viúvo, ainda mora na rua Ubaldino do Amaral, num casarão velho, dispendioso e cheio de goteiras: “Minha função é espalhar vasilhas e panelas quando chove, e a diarista recolhe depois”.

Seus irmãos se mudaram para apartamentos, mas ele resiste. Marleth falou que, se quisesse, poderia ajudá-lo a procurar um apartamento. “Dá muito trabalho, o mais fácil seria morrer”, disse, alegre.

“O prédio do Tezza é que é bom, tem só quatro andares”, continuou, referindo-se ao edifício onde moram o escritor Cristóvão Tezza e o tradutor Caetano Galindo. Não seria bom se mudasse para o prédio, pois teria dois vizinhos literatos?

“Seria péssimo, porque eles só iriam falar de literatura e detesto conversar sobre o assunto”, respondeu. No entanto, desde que começamos a papear, pelo telefone, nos anos 1980, a literatura é seu tema dominante. Ele não gosta é da vida literária.

Por exemplo: me contaram que sempre cumprimentava Galindo ao se cruzarem. O tradutor escreveu uma resenha elogiosa de um livro seu e Dalton passou a atravessar a rua quando o via vindo.

Não se vê como um ser inefável, artista. Escrever é um ofício, disse-me há décadas. Acha que seus livros importam mais do que ele, o mero homem que os redige.

Tem uma cachorrinha, uma bassê: “É uma alegria, uma excelente companhia. Quando volto para casa, late, late, late. Tenho de encaminhá-la, com broncas, para um quartinho. Ela vai na minha frente, resignada, de orelhas baixas; percebe que se excedeu. Ao contrário de outros exemplares de fêmeas, não guarda ressentimento”.

A bassê é ótima, mas não é seu bicho preferido. “A melhor coisa do mundo é ter um galinheiro”, disse. “Você pode comer aqueles ovos maravilhosos todos os dias; e, quando solta as galinhas, elas andam em fila indiana atrás de você.”

O triste é que uma figura folclórica existe e está à espreita: o ladrão de galinhas. “Ele leva todas, deixa só uma, para que você continue a criá-las e ele volte para roubá-las de novo”, contou. “Fechei meu galinheiro porque o custo afetivo era muito grande.”

Falou demoradamente de Otto Lara Resende, que achava exemplar ao vivo, na troca de cartas e na literatura. O Otto de corpo presente, disse, era leve, arreliento, afetuoso, mulherengo. O por escrito, angustiado, católico, cheio de remorsos, encrencado. É um injustiçado: “O conto ‘Gato Gato Gato’ é uma obra-prima; e que título!”.

Outro escritor de quem falou com admiração é J.D. Salinger. Aprecia suas frases enxutas; o uso da oralidade e da gíria; o frescor com que recria a adolescência.

Chegou um rapaz, corpulento e com a barba por fazer, e se sentou à mesa. Era o dono de uma loteca na vizinhança. É uma espécie de agente do escritor, que sempre proíbe a adaptação de seus contos para o teatro.

Há pouco, Dalton baixara a guarda para uma atriz que o procurou pessoalmente. “Não deveria abrir exceção, mas como era uma jovem atriz, pronto, topei”, disse, rindo de si mesmo.

Os produtores da tal peça espalhavam que Dalton estaria presente em determinadas noites, e o público aumentava. Soube que um espectador disse a uma senhora, na entrada, que ela não deveria ver o espetáculo: “é pornográfico”. Dalton nunca assiste às adaptações. Mas escuta com atenção o que Marleth diz a respeito delas.

Gostou “à beça” de “Guerra Conjugal”, a adaptação de alguns de seus contos para um filme, dos anos 1970, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade. Esquecido, ele é de fato ótimo.

Apesar de não ir ao cinema, Dalton está por dentro dos últimos lançamentos. Só vê DVDs. Ou melhor, revê sempre os mesmos filmes. Venera o ator Ray Milland: “Ele tem a mesma expressão, a mesma máscara, repete os mesmos gestos e expressões nos filmes de caubói”.

Chamou a atenção para a rua em que estávamos, acho que na zona, movimentada em plena tarde. “As putas são fellinianas”, disse. Na calçada em frente estava uma delas, gordíssima, num collant agarradíssimo. “Ela não vai ficar dez minutos ali. Logo virá um freguês, irão ao motel da esquina e ela voltará em meia hora.” Quando fomos conferir, pouco depois ela não estava mais lá.

Perguntei-lhe se havia um ponto de drogas por ali. “O crack é vendido faz bastante tempo”, informou. O rapaz da loteca lhe passou em silêncio um envelopão pardo, que o contista pôs no bolso interno da jaqueta sem abrir. “Opa, é o crack do Dalton”, proclamei, para seu gáudio.

Contei que almoçara horas antes com Sergio Moro, o chefe da Lava Jato. Dalton pediu detalhes duas vezes, que misturei com comentários, como o de que o juiz era um pavão.

Disse que eu implicara com Moro por um motivo subconsciente: “Ele usa as camisas negras dos fascistas do Mussolini”. Completou: “Torço para que toda essa agitação leve a algo”.

A tarde caía quando nos despedimos na calçada. Fazia frio e pôs o boné. Recitei uma frase sua que sei de cor: “Que foi feito de mim, ó Senhor, morto que sobreviveu aos seus fantasmas, gemendo desolado por entre as ruínas de uma Curitiba perdida, para onde sumi, que sem-fins me levaram?”.

Dalton Trevisan abriu pela última vez o sorrisão, tão bom de ver.

7 de junho de 2024

Marleth Silva, que foi editora-executiva da Gazeta do Povo, saiu do jornal antes que se tornasse uma latrina de extrema direita. Publica contos e comentários culturais no Plural, também de Curitiba. Nunca escreveu sobre Dalton.

Sergio Moro quis que o almoço em 2016 fosse em off. À noite, deu uma aula na Federal do Paraná sobre a presunção de inocência, à qual assisti com a sua anuência. No mesmo dia, armou a divulgação, ilegal e espalhafatosa, de um telefonema entre Lula e Dilma, impedindo que o ex-presidente fosse nomeado ministro.

Dalton Trevisan fará 99 anos na próxima sexta-feira, dia 14. Manda pelo correio seus novos escritos. Artesanais e de tiragens esquálidas, são pequenas brochuras onde agonizam marafonas, vadios, meganhas, noias e velhos sem dentadura; onde gaviões e rolinhas sobrevoam um labirinto de almas perdidas, Curitiba.