Com lavouras destruídas, produtores gaúchos colocam futuro em dúvida

Saúde e Bem-estar

Os campos do Rio Grande do Sul que abastecem com alimentos boa parte do país foram uma das áreas mais prejudicadas pelas inundações catastróficas que atingiram o Estado, com prejuízos calculados na casa de bilhões de reais, e produtores que não sabem como ou por que recomeçar.

No entorno de Porto Alegre e nos vales dos rios Taquari, Pardo e Caí, pequenas propriedades dominam a produção de carnes, grãos, frutas, leite e hortaliças que chegam à mesa de muitas cidades brasileiras, mas agora acumulam perdas atrás de perdas.

“Eu te digo uma coisa: eu completei 60 anos de idade e sempre tive força, mas agora balançou”, diz o produtor de arroz Dalmir Bif Goulart.

Dono de uma área de 500 hectares em Montenegro, no vale do Caí, a cerca de 100 quilômetros de Porto Alegre, Goulart perdeu praticamente duas colheitas. A que plantou em outubro de 2023 foi arrasada pela enchente de novembro daquele ano. A segunda tentativa, enterrada pela inundação deste mês.

Com prejuízos que passam de 800 mil reais em cada caso, segundo ele, a enchente acabou com sua esperança.

“Não temos ideia do que vamos fazer daqui para frente. As lavouras foram destruídas, nós não temos estradas. A gente não sabe nem como começar. A gente ficou desmotivado. A vontade é de sumir daqui, ir para outro lugar, fazer não sei o quê. É apavorante”, lamenta.

Um estudo obtido pela Reuters com base em imagens de satélite mostra que as inundações atingiram 45% da área de imóveis rurais dos 58 municípios da bacia hidrográfica do Guaíba, formada por diversos rios, entre eles Taquari, Caí, Sinos e Jacuí.

A imensa maioria dos imóveis atingidos são de pequenos produtores de agricultura familiar, que representam 28% da área. Grandes propriedades, mais voltadas a monoculturas, representam 49% da área atingida.

Dos terrenos afetados, 43,6% são de plantio de arroz (96 mil hectares); 40,6% de soja (89,49 mil hectares) e apenas 4,57% são de área urbanizada (10 mil hectares).

“São regiões que têm muita produção de cítricos, suínos, aviários, arroz. Na maioria pequenos agricultores associados em cooperativas ou em produção integrada com empresas”, explica o secretário adjunto de Agricultura e Pecuária do Rio Grande do Sul, Márcio Madalena.

Além de o Rio Grande do Sul responder com sua agricultura por boa parte do alimento consumido pelos brasileiros, uma vez que lidera na produção de arroz, o Estado também é grande exportador de carnes e soja, figurando entre os três maiores produtores da oleaginosa do país, o maior fornecedor global do produto.

A área plantada total no Estado com grãos e oleaginosas é de 10,4 milhões de hectares, sendo 6,76 milhões de hectares de soja, 1,3 milhão de hectares de trigo, 900 mil hectares de arroz e outros 815 mil hectares de milho, segundo dados do governo federal.

O governo federal está trabalhando para viabilizar a importação de arroz para atenuar o impacto nos números da inflação nacional, mas a medida enfrenta a resitência de produtores do Rio Grande do Sul.

SEGUIDAS PERDAS

O consultor fundiário Richard Torsiano, CEO da Terra Analytics, responsável pelo levantamento com base em imagens de satélite, explica que as áreas da Bacia do Guaíba tinham até a década de 1980 uma importante vegetação nativa, mas ela foi suprimida paulatinamente para ampliar a fronteira agrícola. Essas iniciativas foram, em sua maioria, tomadas legalmente, com a aprovação de normas que deram essas permissões.

Em Roca Sales, a 190 quilômetros de Porto Alegre, às margens do rio Taquari, o agricultor Marcos Lohman tenta contabilizar as perdas da terceira enchente seguida. Foram três hectares de soja, milho, aveia e suínos. De 420 porcos, ele conseguiu salvar apenas 130, levados para uma área mais alta.

“A gente fica porque não tem outra escolha, mas a roça eu nem fui ver. Não tenho vontade. Mas o chiqueiro está decidido, foi abandonado. Não dá mais. São três lotes seguidos”, diz.

As terras de Lohman já tinham sido atingidas por uma enchente em setembro de 2023, e novamente em novembro do ano passando.

“Em oito meses três enchentes… eu jurava que isso não ia se repetir. A gente reclamava da seca, mas isso é muito pior, isso leva todo teu patrimônio”, lamenta.

O Rio Grande do Sul enfrentou, até a metade do ano passado, praticamente três anos de seca inclemente, a ponto de o governo federal planejar a implantação de um sistema de cisternas no Estado. Mas, no segundo semestre, vieram as cheias.

De acordo com a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), as perdas nas lavouras inundadas do Estado são estimadas em ao menos 3 bilhões de reais, com maior impacto na soja.

O secretário adjunto Madalena diz que os agricultores gaúchos irão precisar não apenas de renegociação das dívidas e mais crédito, como o governo federal já anunciou, mas apoio técnico e de outras formas, em um esforço de reconstrução da economia agropecuária de todas as formas.

Uma das preocupações dos agricultores é a qualidade da terra. A enchente trouxe não apenas a água dos rios, mas arrastou lixo, óleo, agrotóxicos de outras plantações, e carregou a terra que estava preparada para plantação.

De acordo com a Emater-RS, empresa de assistência técnica ligada ao governo gaúcho, em algumas regiões a perda de hortaliças chega a 90% no caso das folhas e em 70% das demais, e a falta de sol e excesso de umidade devem prejudicar a quantidade e qualidade da produção. Um aumento de preços, diz o órgão, é inevitável.

Getúlio Machado, 54 anos, tem quatro hectares de uma horta orgânica em Eldorado do Sul, a 70 km de Porto Alegre. Foram 30 anos de preparação, conta, levados embora pela enchente.

“O prejuízo é incalculável. Vai levar uns 10 anos para a gente conseguir recuperar essa terra para como estava antes”, diz. “Junto com a colheita perdemos alguns anos de vida.”