Classe artística é a Geni do país – 29/05/2024 – Fernanda Torres

Esportes

A classe artística brasileira é a Geni oficial do país.

Pega no olho do furacão da guerra ideológica, ela virou alvo dos fuzis da extrema direita ao mesmo tempo em que o racha na trincheira da esquerda progressista se ocupou do fogo amigo, com a intelligentsia dos grandes centros tachada de elite branca privilegiada pelos que ganharam voz com a revolução das redes.

Infâmias e fake news são as armas costumeiras do campo de batalha, sendo que, de todas as formas de achaque, a falácia ad hominem é a mais disseminada. Nela, em vez de se debater o argumento, ataca-se quem argumentou, bastando pegar a pedra da Lei Rouanet e jogar em quem bem lhe der na telha, para eliminar do tabuleiro os que ousem proteger os interesses da classe.

E é nesse campo minado que a indústria de audiovisual debate, no Senado e na Câmara dos Deputados, uma das mais importantes deliberações sobre o futuro do setor. Falo da regulação das plataformas de streaming, que há 13 anos operam no país sem legislação adequada.

No Congresso, o lobby dos grandes grupos de tecnologia é gigantesco. As leis que estão prestes a serem votadas decidirão se o audiovisual brasileiro se transformará em mero prestador de serviço ou dono do conteúdo que gera.

O cabo de guerra tem por um lado, no Senado, o projeto de lei 2.331/2022, que acaba com o conceito de obra brasileira independente —usada na regulação dos canais de televisão fechada— e destina apenas 1% do faturamento de cada plataforma para investimento em obras nacionais, através do Fundo Setorial, e outro parco 1% para injeção direta em produtoras independentes.

Na outra ponta, corre na Câmara o projeto de lei 8.889/2017. Fruto de sete anos de debate, ele mantém o conceito de obra brasileira independente e pleiteia 6% de investimento no total, preservando não só milhares de empregos como o direito de propriedade da obra das empresas pátrias.

O que se discute é não apenas o acesso aos investimentos públicos ou a taxação adequada mas o controle sobre a próprio conteúdo. Nas condições atuais, os criadores, uma vez assinado o contrato, abrem mão de qualquer ingerência sobre a criação.

Foi o que aconteceu com Konrad Dantas, o Kondzilla, idealizador do sucesso “Sintonia“, que foi afastado da terceira temporada da série.

E ainda há uma diferenciação a ser feita entre as plataformas de streaming nacionais e as estrangeiras. O mercado atual é altamente volúvel, com compras e assimilações constantes, que provocam demissões em massa de executivos de baixo e alto escalão, além da interrupção de projetos nos cinco continentes cada vez que uma Warner encampa uma HBO e depois é adquirida por uma Discovery.

Sem leis que as protejam, as plataformas brasileiras de streaming correm um risco ainda maior de virar sardinha num mar de tubarões.

O projeto da Câmara, como era de esperar, enfrenta oposição severa. Mas o ódio à cultura é tão violento que até o PL do Senado foi atacado pela direita radical, por considerá-lo favorável às empresas Globo.

Os interesses envolvidos e a irracionalidade são tamanhos que o mais provável é que se entregue a indústria de audiovisual brasileira de mão beijada para CEOs que nunca ouviram falar de Diadorim.

Com 200 milhões de habitantes, o Brasil é um dos maiores consumidores de streaming do planeta, com um público acostumado a assistir às suas próprias histórias.

Donos de uma identidade cultural própria, somos mais do que meros apreciadores de enlatados. Ninguém deseja viver num país fechado para o mundo, as plataformas de streaming são mais do que bem-vindas, mas, assim como na Europa e nos Estados Unidos, é preciso preservar a saúde da economia criativa local.

Muitos foram os retrocessos causados por 20 anos de ditadura militar. Mas havia, pelo menos, nos anos de chumbo, uma estratégia nacionalista de desenvolvimento para o Brasil, que nos rendeu a Embrapa e a Embraer. O setor de telecomunicação foi protegido e o cinema, mesmo debaixo de censura, contou com a Embrafilme.

A Câmara e o Senado de hoje têm maioria conservadora, eleita num período de aversão à classe artística. Muitos, creio, nos consideram uma cambada de comunistas satanistas e admiram o que a ditadura militar fez pelo país.

Peço a esses representantes do povo que pensem no Golbery na hora do voto.

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