As diferenças entre um árbitro de elite do Brasil e um da Premier League

Esportes

O árbitro Braulio da Silva Machado acordou cedo na quarta-feira do último dia 20 de março. A esposa havia saído de casa às 7h30 e ele precisava levar a filha Laura, de sete anos, para fazer exame de sangue. Horas depois, embarcou de Santa Catarina para São Paulo. No aeroporto de Guarulhos, onde conversou com a reportagem da ESPN, fez uma conexão de quatro horas até entrar em outro avião, com destino ao Peru, para trabalhar em amistosos da Data Fifa dali a dois dias. Menos de uma semana antes, foi criticado por decisões polêmicas no duelo entre São Bernardo e Corinthians pela Copa do Brasil.

No curto espaço de tempo descrito acima, Braulio precisou absorver reclamações, cuidar da família, se preparar para as partidas seguintes e seguir a rotina de um prestador de serviço sem carteira assinada, sempre à espera do próximo jogo para garantir que fez a escolha certa há oito anos, quando já apitava jogos da elite do futebol brasileiro: largar o emprego fixo em uma escola e viver do apito. A arbitragem no Brasil não é profissionalizada; os árbitros recebem por partida trabalhada.

A cerca de 9 mil quilômetros de distância, na Inglaterra, esse tipo de preocupação não existe. Na Premier League, os árbitros são contratados e profissionalizados. Não é preciso dividir o apito com outro emprego, como Braulio fez durante os primeiros quatro anos integrando o quadro da CBF. No futebol inglês, a dedicação de um juiz ao futebol existe em tempo integral. É o caso de John Brooks, que conversou com a ESPN por vídeo, amparado pela assessoria da liga, em um cenário diferente do vai e vem de um aeroporto.

O que os dois têm em comum – e que fazem questão de demonstrar – é a paixão pelo futebol e a vontade de fazer o melhor em cada jogo, seja qual for a consequência.

Como lidar com a pressão?

É importante destacar que Braulio é um árbitro de elite no Brasil e está distante da realidade de muitos juízes de futebol pelo país afora. Ele apitou a Supercopa do Brasil deste ano, entre Palmeiras e São Paulo, e o segundo jogo da decisão da Copa do Brasil de 2023, entre São Paulo e Flamengo. O que recebe em um jogo de Série A é quase equivalente a um mês de trabalho dos tempos em que era professor de educação física, garante. A grande questão é que ele nunca sabe quando vai ser o próximo jogo. Não é incomum árbitros receberam ‘ganchos’ e ficarem um tempo sem atuar depois de cometerem grandes erros.

“Isso requer um domínio financeiro muito grande. Eu tenho um fundo de reserva de quatro meses. Isso eu tenho por experiência, por às vezes ficar 30 dias sem apitar um jogo e precisar pagar as contas. O árbitro precisa entender que pode chegar um momento em que ele não vai fazer nenhum jogo. E quando essa falta de jogos chegar, quando essa ausência financeira chegar, ele precisa cuidar da sua família e lidar com tudo isso”, revelou, à ESPN.

“Não é por medo de equívoco [que tenho um fundo de reserva de dinheiro], mas a gente sabe que qualquer coisa pode acontecer e temos de estar sempre resguardados”, disse.

Sob o aspecto financeiro ou não, é fato que a pressão em cima da arbitragem existe. E como lidar? Na Premier League, a PGMOL (órgão responsável pelos árbitros) oferece um grande suporte.

“Nós trabalhamos com um time de psicólogos que nos ajudam nisso, em termos de lidar com a pressão de jogo para jogo, mas também durante a partida. Pode haver casos onde precisamos, por exemplo, passar por uma situação no primeiro tempo e temos de garantir que o segundo tempo flua normalmente”, contou John Brooks.

Braulio também faz um acompanhamento psicológico, mas por conta própria, pagando do próprio bolso.

“Eu faço terapia, tenho uma psicóloga especializada, busco falar com ela, desabafar, contar o que acontece, viver meus lutos. É importante passar por esses momentos, sofrer. As tribulações fortalecem também. Quando estamos em mar calmo, às vezes não estamos tão fortes. De repente vai vir uma tribulação na sua vida e aquilo tudo mexe contigo. Com uma pessoa orientando, capacitada para isso, acaba sendo mais fácil e passamos melhor por qualquer tipo de tribulação”, disse.

“As pessoas precisam entender que o árbitro, quando tem um pequeno equívoco, também sofre. Eu me xingo vendo meus jogos. O torcedor precisa entender que o árbitro também sofre. Quando vemos o jogo e vemos que teve equívoco, sofremos muito também. A gente está ali como prestador de serviço buscando dar o melhor sempre”, pontuou.

Preparação e rede de apoio

Não é apenas com psicóloga que Braulio usa o próprio dinheiro em prol de um investimento na carreira. Parte do que recebe é usada para pagar o que chama de “minha equipe” – são profissionais que ele contrata para ter um apoio e poder se preparar da melhor forma que consegue.

“Hoje eu conto com médico do esporte, nutricionista, preparador físico, fisiologista, fisioterapeuta, toda uma equipe que me dá um suporte e que é paga por mim mesmo. Eu tenho que pagar toda minha equipe para que eu possa render o melhor dentro do futebol. Divido meu dia em estudo, tenho professor de inglês e espanhol, que a gente pratica três vezes por semana. Eu divido minha rotina diária em estudo técnico, estudo de idiomas e treinamentos”, detalhou.

“O custo é muito alto e é diário. Às vezes é preciso tirar da sua casa, da sua filha, do seu núcleo familiar, para investir… E de repente não ter um jogo para dar um retorno. Isso é duro. Mas faz parte. Eu sou muito feliz com a arbitragem e com o que ela me proporcionou. Sou grato. Se hoje tenho uma casa, uma família, posso cuidar da minha esposa e da minha filha, muito veio da arbitragem”, completou.

Faz apenas dois anos que ele conseguiu montar a própria equipe. Antes, tudo era feito sozinho, da maneira que dava, entre um jogo e outro da Série A do Brasileirão, já como árbitro do quadro da Fifa, que passou a integrar no fim de 2018.

“Eu treinava praticamente sozinho. Pesquisava na internet uma suplementação adequada para que pudesse recuperar a fadiga física. Os treinos eu buscava, por ser profissional de educação física, e eu mesmo bolava. No começo eu ficava meio perdido. Treinava demais e chegava cansado no jogo. Ou treinava menos e cansava no jogo também. A própria alimentação, descanso, tudo que envolve pré, durante e pós de um jogo de futebol”.

John Brooks também tem acesso a uma equipe, mas não precisa se preocupar com quem vai contratar ou como vai pagar. Tudo é oferecido pela PGMOL – inclusive conversas com ex-jogadores para dar uma ideia do que os atletas podem sentir na partida.

“Temos um time de cientistas esportivos que trabalham com a gente para cuidar da nossa saúde física. Eles nos mandam um programa de treinamento que temos de seguir para podermos ter o melhor condicionamento físico. São vários elementos que compõem nosso condicionamento, nós temos que estar o mais preparados e rápidos possível para acompanhar o ritmo do jogo, já que alguns dos melhores jogadores do mundo estão jogando na liga”, contou.

“Algumas partidas têm um tempo extra, então também entra a parte da resistência. Temos vários tipos de treinamentos diferentes, dependendo da partida que vamos apitar. Na parte tática, nós nos preparamos para as partidas com um time de analistas, que nos passam situações e coisas que aconteceram em confrontos dos times que vamos arbitrar”, seguiu.

“Podemos ver partes de jogos de um determinado time para ver como eles atacam, como defendem, quem são os jogadores que serão alvos nessas partidas. Isso nos permite estar o mais preparados possível para a partida seguinte, em vez de irmos para o jogo sem saber o que esperar”, completou.

A CBF também oferece cortes com lances de grandes jogos. “A gente não tem um portal para entrar e acessar, mas, se solicitarmos, eles nos encaminham. Entrando em contato com a comissão, de imediato o analista de desempenho faz todo procedimento de cortes, de ataques, como defendem, sistema defensivo e ofensivo”, revelou Braulio.

“Isso facilita muito pro árbitro hoje, esse entendimento de ver como a equipe joga, porque o futebol está muito rápido. A gente sabe que, se não tiver estudo, dificilmente vamos conseguir estar dentro do campo de jogo e ter um bom entendimento da partida”, completou.

Antes de cada duelo, há uma reunião entre os integrantes da equipe de arbitragem, observadores e assessores para ajustar os detalhes finais. A entidade também implementou uma devolutiva da atuação do árbitro. A partir do relatório, é possível estudar erros e acertos.

Todo o restante da preparação do brasileiro é feito sozinho, em uma dedicação constante e individual. Entre estudos e treinamentos, são cerca de seis horas diárias.

“Recebo os treinos do meu profissional, ele me direciona para a academia, às vezes para a academia e depois transferência no campo, e às vezes só campo. Faço treino de agilidade, deslocamento, velocidade e resistência. Ele passa toda a coordenação de exercícios e séries que eu preciso fazer e eu cumpro sozinho, com acompanhamento virtual. É uma carreira solitária, a do árbitro. A gente vive sozinho, apesar de estar em grandes eventos e participar de grandes jogos. No fundo, assim, o árbitro tem uma carreira solitária”, desabafou.

A CBF organiza, em algumas oportunidades, treinamentos de pré-temporada. Nesta semana, por exemplo, 54 árbitros estão juntos no Rio de Janeiro para um curso prático de aperfeiçoamento, com simulações de situações de jogo. Outra turma será formada na semana seguinte – com a presença de Braulio.

Arbitragem ou outro emprego?

Braulio teve um início tardio e meteórico na arbitragem, aos 30 anos. À época, era personal trainer em uma academia, onde trabalhava das 14h às 22h. Pela manhã, ainda estudava. Foi um colega que o indicou para apitar uma pelada em Santa Catarina. No mesmo ano, em 2009, depois de pegar gosto pela função, ingressou em um curso da Federação Catarinense de Futebol. Em 2010, começou trabalhar em jogos no estado. Em 2012, já era do quadro da CBF. A estreia na Série A aconteceu dois anos depois.

Durante todo esse início, até 2016, ele ainda dividia a rotina de jogos com o trabalho comum.

“Eu variava entre [trabalhos em] academia e escola. Era bem difícil, porque eu não podia deixar furo no trabalho, tinha de pagar para alguém cobrir. Eles ficavam por R$ 20 no meu período. Eu comecei a sair bastante e descobriram que eu apitava jogos, aí passaram para R$ 50. Quando descobriram que eu apitava a Série A do Campeonato Brasileiro, eles passaram para R$ 150”.

“Comecei a me destacar no cenário nacional e tive de fazer uma escolha. Confesso que foi muito difícil escolher, porque a escola era o fixo. E a arbitragem até hoje é uma prestação de serviço. Cada jogo que eu faço, tenho de entregar o meu melhor para poder ter o próximo jogo. Graças a Deus foi uma boa escolha, porque venho até hoje trabalhando”, disse, aliviado.

Brooks, na Inglaterra, não precisou fazer a mesma escolha. Ele tinha outro emprego quando era árbitro amador, mas, a partir do momento em que entrou na Premier League, há três anos, foi profissionalizado e pôde ter dedicação exclusiva.

“Eu trabalhava meio período para uma empresa de seguros perto da minha casa e fazia arbitragem em meio período também. Essa pode ser uma dificuldade que os árbitros brasileiros têm. Eu simpatizo com eles e entendo: é difícil tentar comer a refeição pré-jogo no escritório. Entendo os desafios que vêm com essa situação, não é uma situação ideal”, se solidarizou.

“Quando você tem outro trabalho, fica mais complicado, porque pode ser que você tenha que sair mais cedo e enfrentar trânsito para chegar ao jogo, e ainda pode estar com a cabeça no trabalho. Claro que não é o ideal”, seguiu.

“Um dos benefícios e um dos luxos que eu tenho é que eu posso me dedicar totalmente para me preparar antes das partidas e refletir sobre o jogo depois. É ter tempo para me preparar fisicamente, de forma nutricional, dormir bem, para estar com a bateria carregada para arbitrar uma partida, assim como, depois do jogo, conseguir fazer sessões de recuperação e estar 100%”, completou.

Árbitro também é gente

Prestes a completar 45 anos, Braulio acredita que não vai ser um árbitro profissional no Brasil. Uma mudança do tipo envolveria muitas questões, pessoas e órgãos para acontecer tão cedo. Até lá, o objetivo dele é fazer as pessoas entenderem que os juízes de futebol são, antes de tudo, humanos.

“A arbitragem está para servir o futebol, não é o futebol que está para servir a arbitragem. Nós, enquanto árbitros, somos apaixonados pelo futebol. A gente adora ver grandes jogos, a gente adora participar de grandes jogos. Queremos estar nos grandes duelos, nos grandes eventos, com grandes jogadores. Se dependesse da gente, jamais erraríamos, porque sofremos com isso. Sabemos o impacto negativo que causamos para o futebol quando uma partida é decidida por um equívoco”, disse.

“Dificilmente a gente consegue dormir durante a noite [depois de um jogo]. A gente fica acordado, porque são muitas emoções, muitas decisões fortes, muitas situações, as posições que tomamos. Isso faz com que o árbitro chegue no hotel às vezes até sem fome, sem sono nenhum, quase que vira uma noite inteira pensando em tudo que aconteceu, o que pode ser melhor”, seguiu.

“Eu geralmente não tenho o hábito de ver [a partida] imediatamente pós-jogo, mas no outro dia eu assisto aos meus jogos para poder ver o que aconteceu, o que deixei de sancionar, o que foi sancionado da maneira correta, o que preciso melhorar. E assim a gente meio que se estuda novamente. Eu mesmo acabo me xingando. Para o torcedor ficar um pouco mais aliviado também e não achar que a gente só vai lá, apita e vai embora e que não tem essa preocupação. Nossa preocupação com o futebol é muito grande”, completou.

Qual é o prazer de um árbitro?

Ser árbitro de futebol, em qualquer país do mundo, não é fácil – com profissionalização ou não. Mas, de alguma forma, traz uma compensação. “É realmente um trabalho difícil. Temos muita visibilidade, mas é um trabalho que a gente gosta, que a gente curte, tentamos dar o nosso melhor. Mas, sim, é uma profissão com muitos desafios”, ponderou Brooks.

Árbitro não faz gol, não ganha campeonato, não tem o nome gritado pela torcida. E é justamente disso que Braulio gosta. “[Meu prazer] é passar despercebido. Poderia ser as grandes decisões, um pênalti, um cartão vermelho bem aplicado, um pênalti bem marcado. Mas para mim, hoje, com toda a experiência que eu já tive, é quando eu saio de um jogo e não falam bem nem falam mal. Acho que a satisfação de dever cumprido é o que a gente mais busca”, finalizou.

*Com edição de Thiago Cara