Antonio Prata: O encolhedor contrariado – 18/05/2024 – Antonio Prata

Esportes

“O problema do Brasil é que ninguém quer jogar no gol”, disse-me alguém, algum dia, dizendo que o Tim Maia o havia dito. Dei um Google e não achei qualquer pista de que a frase fosse do saudoso síndico. (Na verdade, sequer achei a frase). “O problema do Brasil” —digo eu— “é que ninguém quer conferir a fonte”.

Outra versão da mesma ideia, que não tenho noção de quem tenha formulado: “O problema do Brasil é que ninguém quer limpar o ralinho”. Duvido que seja do Tim Maia. Acho que quando ele estava vivo os ralinhos de pia ainda não eram tão presentes. (Ou já eram e eu, adolescente, é que não os limpava?). Não importa. Deu pra entender o conceito.

Outro dia escrevi sobre o Marcão, grande ser humano que se orgulhava de ser um “puxador de palmas”. Nestes tempos covardes em que todo mundo pensa, antes de mais nada, no que os outros vão pensar, Marcão tinha a coragem de ser o primeiro a desnudar seu entusiasmo. Ontem lembrei de outro tipo humano, diametralmente oposto ao “puxador de palmas”, mas que viceja no mesmo habitat (cinemas, teatros e shows): o “encolhedor contrariado”.

Se você chega depois que o espetáculo começou e obriga a fileira inteira a encolher as pernas para passar, justifica-se o mau humor da turma. O atrasado atrapalha. Mas o contumaz “encolhedor contrariado” franze o cenho para quem precisa passar mesmo antes do começo do filme, peça ou show. Aí está, cuspido e escarrado, o brasileiro que não quer jogar no gol, não quer limpar o ralinho.

Variação sobre o mesmo tema. Show com mesas. A mesa tem seis lugares. Você compra dois, já sabendo que vai ter que dividi-la com quatro desconhecidos. Quantas vezes não cheguei e fui recebido, pelos que já estavam lá, com um olhar de profundo descontentamento? O contrário também é verdade. Eu estava na mesa e chega alguém decepcionado por constatar o óbvio: a mesa não será só dele. Beira o delírio: o sujeito acredita que por algum milagre, num show do Chico Buarque ou do Zeca Pagodinho, todas as cadeiras em volta dele estarão vazias. O bebê ungido por Jeová para ser o reizinho do tanque de areia. Ou da fileira do cinema. Ou da mesa do show.

Variação automotiva. Você tá numa rua de duas pistas que, por causa de uma obra ou de um estreitamento da via, vira de uma pista só.

Acontece, por exemplo, com quem vem da Lorena pra Rebouças. Eu, modéstia à parte, um democrata, aplico a teoria do zíper: deve tomar à frente primeiro um que vem pela direita, depois um da esquerda, um da direita, um da esquerda e assim por diante. Mas há facínoras que não estão nem aí pra justiça, pra igualdade ou sequer para a lógica. Eles querem simplesmente chegar na frente e vão empurrando o carro pra cima do seu (geralmente é um carro maior do que o seu) até você preferir abrir espaço ao ogro do que abrir sinistro no seguro. Não comungam da teoria do zíper, mas da teoria do velcro: quem tá por cima amassa quem vem por baixo.

Podem me acusar, como sempre, de ficar aqui alimentando picuinhas enquanto o mundo ferve ou afunda. Muitos anos atrás, reclamando de um prestador de serviços que, em época de congelamento de preços, tinha aumentado o seu, o escritor, jornalista e frasista Humberto Werneck ouviu: “quem sou eu, amigo, senão uma gota no Oceano?”. Ao que, sempre ferino, disparou: “E de que é feito o Oceano, amigo, senão de gotas?”. Marcão puxaria as palmas.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.